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Fuvest 2015. Prova V. Questão 38. Operário de Drummond


TEXTO PARA AS QUESTÕES DE 37 A 39

O OPERÁRIO NO MAR

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na sua blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chama-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar-lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-                                                                                                                                                                o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

 Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do mundo.

 

38 Atente para as seguintes afirmações relativas ao texto de Drummond, considerado no contexto da obra a que pertence:

I. A referência inicial aos modos de se representar o operário sugere uma crítica do poeta aos estereótipos presentes na literatura da época em que o texto foi escrito.

II. O alcance simbólico da figura do operário depende, inclusive, do fato de que, no texto, ele é constituído por tensões que o fazem, ao mesmo tempo, comum e extraordinário, familiar e enigmático, próximo e longínquo etc.

III. A imagem do operário que anda sobre o mar pode simbolizar a criação prodigiosa de um mundo novo – a “vida futura” -, igualmente anunciado em símbolos como o das “mãos dadas”, o da “aurora”, o do “sangue redentor”, também presentes no livro.

Está correto o que se afirma em

a) I, apenas.

b) II, apenas.

c) I e II, apenas.

d) II e III, apenas.

e) I, II e III.

Resposta E

I. Correta, a razão disso é que o eu-poético expressa uma crítica ao estereótipo da literatura “proletária” da década de 1930. Essa crítica é desenvolvida ao qualificar o operário como “um homem comum”, sem a roupa que lhe é imputada “no conto, no drama, no discurso político”.

II. Correta, uma vez que o texto de Drummond concilia elementos conflitantes: comum (“é um homem comum”) e extraordinários (“está caminhando no mar”); é comum, familiar, mas guarda “segredos” e “uma significação estranha no corpo”.

III. Correta.  Andar sobre o mar o aproxima o operário de Cristo, não em termos religiosos, mas no sentido de sua capacidade de revelar um mundo novo. O operário traria de um mundo novo em que imperaria a felicidade coletiva, assim como Cristo trouxe o cristianismo.

Veja como esse assunto foi cobrado na prova da FUVEST de 2014!

Drummond questão 86 2014

Drummond questão 87 2014

Drummond questão 88 2014

Drummond questão 89 2014

Drummond questão 90 2014